sábado, 25 de julho de 2009

ALLAN KARDEC E A NOVA CONSTITUIÇÃO.


As considerações que encerra o extrato adiante da ata feita a propósito da caixa do Espiritismo, na Sociedade de Paris, em 5 de maio de 1865, por Allan Kardec, sendo o prelúdio da nova constituição do Espiritismo, que elaborava, e a exposição de seus motivos sobre a sua posição pessoal, tem seu lugar necessário neste preâmbulo.

"Falou-se muito dos produtos que eu retirava de minhas obras; seguramente, ninguém crê seriamente em meus milhões, apesar da afirmação daqueles que dizem ter, de boa fonte, que tenho um trem principesco, carruagem a quatro cavalos e que, em minha casa, não se anda senão sobre tapetes de Aubusson. (Revista de junho de 1862, página 179.)

Seja o que for que se haja dito, além disso, o autor de uma brochura que conheceis, e que prova por cálculos hiperbólicos, que meu orçamento de receitas ultrapassa a lista civil do mais poderoso soberano da Europa, porque, na França somente, vinte milhões de espíritas são meus contribuintes (Revista de junho de 1863, página 175), há um fato mais autêntico do que os seus cálculos, é que jamais pedi a ninguém, que ninguém nada deu, jamais, a mim pessoalmente; em uma palavra, que não vivo às custas de ninguém, uma vez que, das somas que foram voluntariamente confiadas, nenhuma parcela dela foi desviada em meu proveito (1).

(1) Aquelas somas se elevavam, naquela época, ao total de 14.100 francos, cujo emprego, em proveito exclusivo da Doutrina, está justificado pelas contas.
"Minhas imensas riquezas proviriam, pois, de minhas obras espíritas. Se bem que essas obras tiveram um sucesso inesperado, basta ser um pouco iniciado nos negócios de livraria, para saber que não é com livros filosóficos que se amontoam milhões em cinco ou seis anos, quando não se tem sobre a venda senão alguns centavos por exemplar. Mas que seja forte ou fraco, esse produto sendo o fruto de meu trabalho, ninguém tem o direito de se imiscuir no emprego que dele faço.

"Comercialmente falando, estou na posição de todo homem que recolhe o fruto de seu trabalho; corro o risco de todo escritor que pode vencer, como pode fracassar.
"Se bem que, sob esse aspecto, não tenha nenhuma conta a prestar, creio útil, pela própria causa à qual estou votado, dar algumas explicações.

"Quem viu o nosso interior outrora, e o vê hoje, pode atestar que nada mudou em nossa maneira de viver desde que me ocupo de Espiritismo; é muito simples agora como o fora outrora. É certo, pois, que meus benefícios, quaisquer que sejam, não servem para me dar os gozos do luxo. Por que isso acontece?

"O Espiritismo, tirando-me da obscuridade, veio me lançar num caminho novo; em pouco tempo encontrei-me arrastado por um movimento que estava longe de prever. Quando concebi a idéia de O Livro dos Espíritos, a minha intenção era de não me pôr em evidência e ficar desconhecido; mas, prontamente ultrapassado, isso não me foi possível: devia renunciar aos meus gostos de solidão, sob pena de abdicar a obra empreendida e que crescia cada dia; foi-me necessário seguir o impulso e tomar-lhe as rédeas. À medida que ela se desenvolvia, um horizonte mais vasto se desenrolava diante de mim e lhe recuava os limites; compreendi, então, a imensidade de minha tarefa, e a importância do trabalho que me restava a fazer para completá-la; as dificuldades e os obstáculos, longe de me assustarem, redobraram a minha energia; vi o objetivo e resolvi alcançá-lo com a assistência dos bons Espíritos. Sentia que não tinha tempo a perder e que não o perdi nem em visitas inúteis, nem em cerimônias ociosas; essa foi a obra de minha vida; dei-lhe todo o meu tempo, sacrifiquei-lhe o meu repouso, a minha saúde, porque o futuro estava escrito diante de mim em caracteres irrecusáveis.

"Sem nos afastarmos de nosso gênero de vida, essa posição excepcional não nos criou menos necessidades às quais, só os meus recursos pessoais, muito limitados, não me permitiam prover. Seria difícil imaginar a multiplicidade das despesas que ela puxa e que teria evitado sem isso.

"Pois bem, senhores, o que me proporcionou esse suplemento de recursos foi o produto de minhas obras. Digo-o com alegria, foi com o meu próprio trabalho, com os frutos de minhas vigílias que provi, em maior parte pelo menos, às necessidades materiais da instalação da Doutrina. Trouxe assim uma considerável cota-parte para a caixa do Espiritismo; aqueles que ajudam a propagação das obras, não poderão, pois, dizer que trabalham para me enriquecer, uma vez que o produto de todo livro vendido, de toda assinatura da Revista, aproveita à Doutrina e não ao indivíduo.

"Não era tudo prover ao presente; era necessário também pensar no futuro, e preparar uma fundação que, depois de mim, pudesse ajudar aquele que me substituirá na grande tarefa que terá que cumprir; essa fundação, sobre a qual devo me calar ainda, se liga à propriedade que tenho, e foi em vista disso que apliquei uma parte de meus produtos para melhorá-la. Como estou longe dos milhões, com os quais me gratificaram, duvido muito que, apesar de minhas economias, meus recursos não me permitirão jamais dar, a essa fundação, o complemento que gostaria de ver em minha vida; mas, uma vez que a sua realização está nos objetivos de meus guias espirituais, se não o faço por mim mesmo, é provável que, um dia ou outro, isso se fará. À espera, elaboro-lhe os planos.

"Longe de mim, senhores, o pensamento de tirar a menor vaidade do que venho de vos expor; foi necessária a perseverança de certas diatribes para me obrigar, embora contra a vontade, a romper o silêncio sobre alguns dos fatos que me concernem. Mais tarde, todos aqueles que a malevolência se empenhou em desnaturar serão dados à luz por documentos autênticos, mas o tempo dessas explicações ainda não chegou; a única coisa que me importava para omomento, era que fôsseis edificados sobre a destinação dos fundos que a Providência fez passar por minhas mãos, qualquer que lhe seja a origem. Não me considero senão como depositário, mesmo daqueles que eu ganho, com mais forte razão daqueles que me são confiados.

Alguém me perguntou, um dia, sem curiosidade, bem entendido, mas por puro interesse pela coisa, o que eu faria com um milhão, se o tivesse. Respondi-lhe que hoje seu emprego seria muito diferente do que o foi no princípio.

Outrora, teria feito a propaganda com uma grande publicidade; agora, reconheço que isso teria sido inútil, uma vez que os nossos adversários dela estão encarregados com seus gastos. Não me colocando, então, em minhas mãos grandes recursos à minha disposição, para esse fim, os Espíritos quiseram provar que o Espiritismo deveria o seu sucesso à sua própria força.

"Hoje, que o horizonte se alarga, que o futuro sobretudo se desenrola, necessidades de uma ordem muito diferente se fazem sentir. Um capital, como aquele que supondes, receberia um emprego mais útil. Sem entrar nos detalhes que seriam prematuros, direi simplesmente que uma parte serviria para converter minha propriedade em uma casa especial de asilo espírita, cujos habitantes recolheriam benefícios da nossa Doutrina moral; a outra para constituir uma renda inalienável destinada: 1º à manutenção do estabelecimento; 2º para assegurar uma existência independente àquele que me sucederá e àqueles que o ajudarão em sua missão; 3º para subvencionar as necessidades correntes do Espiritismo, sem correr o risco de produtos eventuais, como sou obrigado a fazê-lo, uma vez que a maior parte de meus recursos repousa sobre o meu trabalho, que terá um fim.

"Eis o que farei; mas se essa satisfação não me for dada, sei que, de uma maneira ou de outra, os Espíritos que dirigem omovimento proverão a todas as necessidades em tempo útil; é porque não me inquieto de nenhum modo, e me ocupo daquilo que para mim é a coisa essencial: o término dos trabalhos que me restam a terminar. Isto feito, partirei quando aprouver a Deus me chamar."

Ao que disse, então, Allan Kardec, acrescenta hoje: Quando a comissão for organizada, dela faremos parte a titulo de simples membro, tendo nossa parte de colaboração, sem reivindicar, para nós, nem supremacia, nem título, nem qualquer privilégio.

Se bem que parte ativa da comissão, não seremos nenhuma carga ao orçamento, nem por emolumentos, nem por indenizações de viagens, nem por uma causa qualquer; se jamais pedimos nada a ninguém para nós, o faríamos ainda menos nesta circunstância; nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencerão à Doutrina.

Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parte dos recursos dos quais disporá a comissão será desviada em nosso proveito.

A ela trazemos, ao contrário, a nossa cota-parte:
1º Pela entrega do produto de nossas obras feitas e a fazer;
2º Pela aplicação de valores mobiliários e imobiliários.
Quando a Doutrina for organizada pela constituição da comissão central, nossas obras se tornarão propriedade do Espiritismo, na pessoa dessa mesma comissão, que delas terá a gerência e dará os cuidados necessários à sua publicação, pelos meios mais próprios a popularizá-los. Deverá igualmente se ocupar de sua tradução nas principais línguas estrangeiras.

A Revista foi, até este dia, e não poderia ser senão uma obra pessoal, tendo em vista que ela faz parte de nossas obras doutrinárias, servindo em tudo de anais ao Espiritismo. É lá que todos os princípios novos são elaborados e postos ao estudo. Era, pois, necessário que ela conservasse seu caráter individual para a fundação da unidade.

Fomos muitas vezes solicitados a fazê-la aparecer em épocas mais próximas; por lisonjeiro que fosse para nós esse desejo, não pudemos a ele aceder; primeiro, porque o tempo material não nos permitia esse aumento de trabalho, e, em segundo lugar, porque ela não deveria perder o seu caráter essencial, que não é o de um jornal propriamente dito.

Hoje, que a nossa obra pessoal se aproxima de seu termo, as necessidades não são mais as mesmas; a Revista se tornará, como as nossas outras obras, feitas e a fazer, propriedade coletiva da comissão, que lhe tomará a direção, para maior utilidade ao Espiritismo, sem que renunciemos, por isso, a lhe dar a nossa colaboração.


Para completar a obra doutrinária, resta-nos publicar várias outras obras, que dela não são a parte menos difícil, nem a menos penosa. Se bem que delas possuamos todos os elementos, e que o programa lhes esteja traçado até o último capítulo, poderíamos dar-lhes cuidados mais assíduos e ativá-las se, pela instituição da comissão central, estivéssemos livres de detalhes que absorvem uma grande parte de nosso tempo.

O primeiro período do Espiritismo foi consagrado ao estudo dos princípios e das leis cujo conjunto deveria constituir a Doutrina, em uma palavra, preparar os materiais, ao mesmo tempo que, pela divulgação da idéia, a semente estava lançada, mas que, semelhante àquela da parábola do Evangelho, não deveria frutificar por toda parte igualmente. A criança cresceu; está adulta, e o momento é chegado em que, sustentada por adeptos sinceros e devotados, deve caminhar ao objetivo que lhe está traçado, sem ser entravada pelos retardatários.

Mas como fazer essa triagem? Quem ousaria tomar a responsabilidade de um julgamento a ser feito sobre as consciências individuais? O melhor era, pois, que essa triagem se fizesse por si mesma, e para isso o meio era muito simples; bastava plantar uma bandeira, e dizer: aqueles que a adotam seguem-na!

Tomando a iniciativa da constituição do Espiritismo, usamos de um direito comum, o que tem todo homem de completar, como o entende, a obra que começou, e de ser juiz da oportunidade; desde o instante em que cada um está livre para se reunir ou não, ninguém pode se lamentar de sofrer uma pressão arbitrária. Criamos a palavra Espiritismo pelas necessidades da causa; temos muito o direito de determinar-lhe as aplicações, e de definir as qualidades e as crenças do verdadeiro espírita. (Revista Espírita, abril de 1866, página III).

Segundo tudo o que precede, compreender-se-á facilmente o quanto era impossível e prematuro estabelecer essa constituição no início. Se a Doutrina Espírita estivesse formada com todas as peças, como toda concepção pessoal, teria sido completada desde o primeiro dia, e, desde então, nada teria sido mais simples do que constituí-la; mas como não foi ela feita senão gradualmente, em conseqüência de aquisições sucessivas, a constituição teria, sem dúvida, reunido todos os amantes de novidades, mas teria sido logo abandonada por aqueles que não lhe teriam aceito todas as conseqüências.

Mas, dir-se-á talvez, não é uma cisão que estabeleceis entre os adeptos? Fazendo dois campos, não é enfraquecer a falange?

Todos aqueles que se dizem espíritas não pensam do mesmo modo sobre todos os pontos, a divisão existe de fato, e é bem mais prejudicial porque pode chegar que não se saiba se, num Espírita, se tem um aliado ou um antagonista. O que faz a força é o universo; ora, uma união franca não poderia existir entre pessoas interessadas, moral e materialmente, a não seguir o mesmo caminho, e que não perseguem o mesmo objetivo. Dez homens sinceramente unidos por um pensamento comum são mais fortes do que cem que não se entendem. Em semelhante caso, a mistura de objetivos divergentes tira a força de coesão entre aqueles que quereriam andar juntos, absolutamente como um líquido que, se infiltrando em um corpo, é um obstáculo para a agregação das moléculas.

Se a constituição tem por efeito diminuir momentaneamente o número aparente dos espíritas, terá por conseqüência inevitável dar mais força àqueles que caminharão de comum acordo para a realização do grande objetivo humanitário que o Espiritismo deve alcançar. Conhecer-se-ão e poderão se estender a mão de um canto do mundo ao outro.

Além disso, ela terá por efeito opor uma barreira às ambições que, se impondo, tentariam desviá-lo em seu proveito, e de fazê-lo desviar de sua rota. Tudo está calculado em vista desse resultado, pela supressão de toda autocracia ou supremacia pessoal.

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